Revista
do Projeto Pedagógico
II - Trabalhando
com Alunos: Subsídios e Sugestões
12.
Por um novo currículo de ciências
Neste texto, pretendemos apresentar e discutir os aspectos centrais
da nossa concepção sobre o papel da educação
em ciências no Ensino Fundamental. Essa concepção
pode ser sintetizada em alguns pontos fundamentais, a saber:
1.
O reconhecimento da importância do conhecimento prévio
dos estudantes como elemento fundamental a ser considerado no processo
de ensino-aprendizagem.
2.
A convicção de que resgatar o conhecimento prévio
implica organizar os conteúdos do currículo de ciências
em torno de temas vinculados à vivência dos estudantes.
3.
A disposição em promover maior comunicação
entre os saberes das várias disciplinas que compõem a
área de ciências naturais, ao tratar dos temas ligados
à vivência dos estudantes.
4.
A clareza de que é necessário escolher e privilegiar certos
conceitos centrais e idéias-chave que estruturam o saber das
ciências naturais, e promover de modo progressivo oportunidades
para que os estudantes possam compreendê-los e se apropriar deles.
5.
A necessidade de promover reflexões sobre a natureza das ciências
e suas relações com a tecnologia e a sociedade contemporânea.
Acreditamos
que esses pontos nos aproximam dos professores que buscam inovar sua
prática pedagógica e promover uma educação
em ciências comprometida com o desenvolvimento da autonomia intelectual
dos estudantes. Este artigo representa as atuais elaborações
teóricas de um grupo de professores que vem pesquisando o currículo
de ciências e, ao mesmo tempo, orientando programas de formação
continuada de professores e de revisão curricular.
Não pretendemos obter apenas concordâncias com as nossas
idéias, mas também contestações.
Todo texto é sempre um instrumento de provocação.
Além disso, este texto está no limite entre o real
e o utópico, aqui considerado como guia para a realização
que, por sua vez, é entendida como ação de produzir
o real. Cabe ao professor-leitor reagir às nossas asserções,
dialetizá-las, confrontá-las com sua própria realidade
e suas próprias concepções.
O
aluno como sujeito da aprendizagem
O currículo de ciências no qual acreditamos pressupõe
uma educação mais dialógica. Isso, por sua vez,
implica propor e vivenciar atividades nas quais se possa tomar consciência
de alguns aspectos dos conhecimentos prévios dos estudantes sobre
o tema a ser desenvolvido.
Muitas atividades concebidas para esse fim têm o formato de atividades
introdutórias. Mas esse não é o único nem
o principal instrumento para se estabelecer o diálogo com os
conhecimentos prévios dos estudantes. Para resgatar e utilizar
de modo sistemático os conhecimentos prévios é
necessário pensar um currículo a partir de contextos e
temas vinculados à vivência dos estudantes.
Além disso, ao procurar estabelecer relações entre
os conhecimentos prévios dos estudantes e os conhecimentos científicos,
não se podem menosprezar as inúmeras diferenças
entre esses dois sistemas de conhecimento. Por exemplo, quando se estabelece
como meta a compreensão, do ponto de vista da ciência,
dos processos de nutrição vegetal e fotossíntese,
deve-se estar atento ao fato de que os estudantes freqüentemente
acreditam que o crescimento ou o aumento de massa dos vegetais deve-se
à absorção de terra. Em outras palavras, os estudantes
freqüentemente pensam que as plantas "comem terra". A
ciência, por outro lado, interpreta o aumento de massa dos vegetais
como conseqüência da incorporação do dióxido
de carbono presente na atmosfera. As plantas, portanto, não "comem
terra", mas, em termos metafóricos, certamente "comem
ar", assim como "comem água".
O conhecimento prévio dos estudantes entra em conflito com as
idéias das ciências em muitas situações.
Quando tal conflito ocorre, não há como contribuir para
que o estudante mude seu modo de pensar sem acesso a bons argumentos
e a evidências consistentes que possam justificar e fundamentar
as idéias das ciências. Na falta desses recursos, os conhecimentos
prévios dos estudantes podem constituir obstáculos epistemológicos
intransponíveis à aprendizagem das idéias das ciências.
A
sala de aula como espaço coletivo de produção de
conhecimentos
O diálogo e a argumentação são a tônica
de uma educação efetivamente comprometida com o desenvolvimento
da autonomia moral e intelectual dos educandos. Esse diálogo
não se estabelece apenas entre o professor e cada aluno, considerado
individualmente. Na sala de aula, não existem sujeitos isolados,
mas sujeitos que interagem, com seus afetos e conflitos, por meio da
linguagem e da ação coletiva. É na relação
com o outro que o estudante elabora novas idéias, relaciona-as
com seus conhecimentos prévios e modifica seus modos de compreender
a realidade.
A comunicação que se estabelece nas discussões
sobre textos e atividades propostos pelos docentes exige dois movimentos
coordenados. Em primeiro lugar, o estudante que comunica suas idéias
ao professor ou a seus colegas passa a ter uma consciência ampliada
do significado dessas idéias, bem como de suas conseqüências
e possíveis incoerências. Em segundo lugar, a comunicação
permite que o estudante possa analisar uma mesma questão sob
os pontos de vista expressos por seus colegas e professor, reorganizando
seu próprio modo de pensar.
Por outro lado, a comunicação também está
na base de todo processo de produção e validação
do conhecimento científico. A ciência é uma atividade
social. O conhecimento científico é provisório
e parcial. Apesar disso, ele é confiável, justamente,
porque é construído mediante um intenso processo de trocas
de idéias e críticas que permitem ampliar e aprofundar
a compreensão da realidade que nos cerca e produzir novas realidades.
Por essa razão, as atividades realizadas em sala de aula precisam
ser concebidas para os estudantes vivenciarem o processo de criação,
troca e crítica de idéias que está no cerne da
própria atividade científica. Em outras palavras, as atividades
devem estimular os estudantes a: (a) propor explicações
pessoais para os fenômenos investigados trazendo à tona
suas idéias e conhecimentos prévios; (b) expor idéias
e pontos de vista a seus pares e ao professor; (c) apresentar as razões
que fundamentam seus pontos de vista e evidências capazes de sustentá-las.
Dada a natureza das ciências e do conhecimento científico,
um currículo de ciências precisa contemplar a realização
de atividades práticas, que podem ser experimentais ou de observação
controlada. Tais atividades não são de caráter
meramente ilustrativo, como é freqüente ocorrer no ensino
de ciências. Ao propor a atividade prática apenas como
ilustração, o ensino se alimenta da ilusão de que
a aprendizagem consiste na retenção de informações
dadas externamente, sem qualquer participação ativa do
sujeito na estruturação desse conhecimento. As atividades,
portanto, devem conter um elemento autêntico de investigação
e de produção de novos conhecimentos pelos estudantes.
A
compreensão da natureza das ciências como meta do ensino
de ciências
O ensino de ciências precisa promover uma compreensão adequada
de como a ciência é produzida e de por que ela tem sido
tão valorizada em nossa sociedade. A este respeito, os PCNs propõem
como meta do Ensino Fundamental:
Compreender
a Ciência como um processo de produção de conhecimento
e uma atividade humana histórica, associada a aspectos de ordem
social, econômica, política e cultural. (MEC/ SEF,
1998 p.33).
Para
atingir essa meta, a ciência precisa ser caracterizada como uma
atividade humana, histórica e socialmente determinada, que busca
construir explicações confiáveis sobre o mundo
natural. Em alguns momentos, relatos extraídos da história
das ciências são úteis para discutir o modo como
algumas idéias importantes foram concebidas e desenvolvidas,
até se tornarem aceitas.
Mas o esforço de contribuir para o avanço da compreensão
dos estudantes sobre a natureza da atividade científica não
se restringe à introdução de relatos extraídos
da história das ciências. As ciências precisam ser,
a todo o tempo, caracterizadas como uma atividade de investigação,
e os conceitos e teorias das ciências tratados como o resultado
de um intenso processo de criação de idéias e representações,
submetidas às críticas de outros cientistas, às
pressões e restrições impostas pela cultura, e
a um minucioso trabalho de verificação experimental ou
contraposição a observações controladas.
Uma
abordagem integradora dos saberes disciplinares
Os
eixos temáticos propostos pelo PCNs para a área de ciências
naturais têm como principal intenção promover uma
abordagem integradora dos conteúdos. A intenção
dos PCNs é permitir que, ao longo de todos os anos do Ensino
Fundamental, o estudante tenha oportunidades de desenvolver idéias
ligadas ao estudo do ambiente, da vida, do corpo humano, da saúde,
da terra, do universo, da ciência e da tecnologia.
A perspectiva apontada pelos PCNs implica superar a fragmentação
que tem marcado o tratamento dado aos conteúdos das ciências
na Educação Básica. Uma alternativa é a
estruturação do currículo a partir de temas que,
por sua natureza, requerem diálogo entre saberes de Biologia,
Química e Física.
A esse respeito é importante assinalar que o tratamento integrado
das ciências naturais não é um critério exclusivo
para o desenvolvimento do currículo. A interdisciplinaridade
não é um dogma, mas uma oportunidade para promover uma
compreensão das diferenças e interrelações
das disciplinas que compõem a área de ciências naturais.
Por outro lado, o esforço para superar a fragmentação
no tratamento dos conteúdos de ciências não se limita
à busca de um tratamento interdisciplinar. Também pode
existir fragmentação no interior de cada disciplina. Nesse
caso, a fragmentação é normalmente o resultado
de uma tentativa de se promover o ensino de um excesso de conceitos
e detalhes que, numa primeira abordagem, impedem o estudante de compreender
aquilo que é essencial.
A extensão dos saberes constituídos pelas disciplinas
e a opção por um tratamento dialógico e investigativo
dos conteúdos de ciências indica, assim, a necessidade
de eleger os conceitos e idéias que serão assumidos como
centrais para uma iniciação ao estudo das ciências
naturais.
A
Biologia na educação em ciências do Ensino Fundamental
Consideramos inadequado iniciar o estudo da Biologia pelo estudo das
células. Afinal, uma mera descrição dos elementos
constituintes da célula não resulta em uma compreensão
mais global dos processos celulares. A respiração, a digestão,
a circulação e a excreção são processos
bastante complexos e, quando abordados de modo fragmentado, ou excessivamente
detalhado, impedem a compreensão da articulação
entre os sistemas, dificultando a construção do conceito
de nutrição.
A compreensão dos processos envolvidos na atividade celular pressupõe
o tratamento de um grande número de eventos de alta complexidade,
que estão relacionados entre si. Assim, por exemplo, para promover
a compreensão de como a célula se nutre é preciso
mencionar como ela absorve seletivamente nutrientes, como os transforma
e elimina. Isso implica um grau de abstração muito maior
do que aquele necessário para discutir a nutrição
no organismo como um todo.
Assim, o caminho do macroscópico para o microscópico é
uma opção mais atraente e eficaz para a aprendizagem de
Biologia. Para nós, o conceito de célula não constitui
ponto de partida para o estudo dos organismos vivos. Essa é a
razão pela qual argumentamos a favor de que a discussão
sistematizada do conceito de célula deva acontecer na última
série do Ensino Fundamental. Segundo uma tradição
já consagrada na educação em ciências, o
mundo natural é apresentado de modo fragmentado, como uma sucessão
de referências a: 1º "elementos" do ambiente (ar,
água e solo); 2º características dos seres vivos;
3º estruturas do corpo humano.
A abordagem tradicional apresenta, além disso, um excesso de
conteúdos, o que traz uma idéia enganosa de "aprofundamento"
nos conhecimentos biológicos. Trata-se de um falso aprofundamento,
na medida em que dificulta a formação de uma visão
sistêmica e relacional dos processos biológicos. Nosso
contato com a pesquisa em educação, bem como nossa prática
em sala de aula têm nos mostrado que a descrição
de organelas celulares, de estruturas anatômicas, ou a classificação
e descrição dos grandes grupos de seres vivos pouco têm
contribuído para promover a compreensão das idéias
básicas da Biologia, ou o interesse dos estudantes pelo aprendizado
das ciências.
A escolha dos conteúdos de Biologia deve ter a perspectiva de
introduzir progressivamente o estudante no modo contemporâneo
de pensar e interpretar os processos biológicos. Saber como os
ambientes naturais funcionam e como a vida se mantém e se renova
contribui para a formação da cidadania. Afinal, o saber
biológico pode mudar nossa atitude em relação ao
modo pelo qual pessoas e instituições utilizam os recursos
naturais e tecnológicos disponíveis em nossa sociedade.
A construção de uma hidroelétrica, por exemplo,
tende a ser vista tanto como uma "solução" diante
da necessidade de geração de energia elétrica,
quanto como um "problema" no que diz respeito ao impacto ambiental
da construção.
Os avanços recentes na compreensão dos processos biológicos
e as possibilidades crescentes da intervenção humana nesses
processos demandam mudanças no modo de abordar a Biologia na
escola. Faz-se necessário selecionar idéias-chave que
melhor organizem a compreensão dos sistemas vivos e seus ambientes.
Os conceitos de evolução, adaptação biológica
e diversidade estão no núcleo dessas idéias-chave.
O conhecimento prévio dos estudantes possui diversos pontos de
tensão com relação à formulação
científica dessas idéias. Existe uma tendência comum
de produzir explicações de caráter finalista para
os fenômenos naturais ou atribuir uma intencionalidade explícita
a seres vivos e outros elementos da natureza. Isso ocorre, por exemplo,
quando os estudantes afirmam que "os insetos mudam a cobertura
externa do corpo para crescer", ou que "a água dos
rios e lagos evapora para formar as nuvens".
O desenvolvimento desses conceitos precisa ser acompanhado de oportunidades
para que os estudantes venham a conhecer mais e melhor os animais e
as plantas, em especial aqueles encontrados em nosso país. Conhecer
tais seres vivos implica conhecer como eles vivem, o que permite que
sobrevivam em um determinado ambiente, ou como alterações
no ambiente interferem em seu modo de vida.
O estudo da Teoria da Evolução proporciona uma oportunidade
de síntese e sistematização das idéias de
adaptação e diversidade trabalhadas ao longo de todo o
currículo. Acreditamos que esse estudo constitui uma oportunidade
para se promover uma abordagem histórica, com a discussão
de algumas das principais interpretações dadas por diferentes
correntes do pensamento biológico às adaptações
e transformações dos seres vivos.
Assim como a Teoria da Evolução, acreditamos que os conceitos
fundamentais da Genética também devem ser introduzidos
em uma abordagem histórica e em estreita relação
com a compreensão dos processos de evolução e adaptação
biológica. A discussão sobre genética para o nível
fundamental pode ocorrer sem o tratamento de detalhes ou aspectos muito
complexos. Há muito o que dizer e o que aprender sobre genética
quando se tem como meta a compreensão de certos aspectos básicos
das tecnologias contemporâneas de melhoramento vegetal e animal
e da presença da engenharia genética na produção
de medicamentos e clones. Uma de nossas preocupações centrais
nesse tema é propiciar oportunidades para a realização
de discussões e reflexões sobre os aspectos éticos
e ambientais relacionados a dimensões da ciência e da tecnologia
atual.
O estudo da vida microscópica pode se dar a partir de evidências
macroscópicas da presença desses microrganismos nos ambientes.
Algumas oportunidades para promover esse tipo de abordagem são
o estudo dos processos de decomposição ou de produção
de alimentos e medicamentos. Os microrganismos relacionados à
saúde humana tradicionalmente ocupam lugar central no currículo
de ciências, mas é importante tomar o cuidado de não
reforçar a idéia equivocada de que seres vivos microscópicos
sempre estão relacionados às doenças.
O uso tecnológico de seres vivos, tal como ocorre no controle
de pragas, na produção de vacinas, no tratamento de resíduos
poluentes e em várias outras biotecnologias é conteúdo
pertinente ao currículo de ciências no Ensino Fundamental.
No estudo do corpo humano, é necessário levar em consideração
as transformações do corpo dos estudantes e a integração
dos sistemas que o compõem. Daí a necessidade de enfatizar
funções fisiológicas mais abrangentes, como nutrição,
regulação e reprodução. Questões
relacionadas aos cuidados com o corpo, à saúde, à
sexualidade e aos problemas decorrentes do uso de drogas também
devem ser tratadas nessa perspectiva.
A
Química na educação em ciências do Ensino
Fundamental
Para promover o envolvimento dos estudantes com o aprendizado da Química,
partimos do fato de que existe uma enorme diversidade de materiais e
transformações que permeiam a vida cotidiana. Isso constitui
um elemento facilitador da aprendizagem da Química no Ensino
Fundamental. Por outro lado, a Química lida com modelos e teorias
bastante abstratos, construindo explicações para um mundo
que não se vê. Por isso, é necessário um
intenso trabalho pedagógico para que as idéias sejam compreendidas
não de modo dogmático, mas como uma ferramenta para compreender
e interferir nos processos naturais.
O estudo da Química no Ensino Fundamental comporta um diálogo
amplo e interdisciplinar com a Biologia e com a Física. Isso,
por sua vez, não implica perder de vista a especificidade dessa
ciência. Assim como no caso da Biologia, acreditamos ser necessário
reduzir o número de conceitos e conteúdos de Química
que costumam ser apresentados no Ensino Fundamental, para investir na
compreensão de idéias-chave e desenvolver as bases do
pensamento químico, seja para estudos posteriores, seja para
interpretar os processos químicos que permeiam a vida contemporânea.
As idéias-chave que apontamos como sendo as mais adequadas para
o desenvolvimento da Química no Ensino Fundamental são:
1. diversidade dos materiais e suas propriedades; 2. transformações
dos materiais; 3. constituição dos materiais e modelo
corpuscular da matéria.
Convivemos
diariamente com materiais constituídos por substâncias,
que são objeto de interesse da Química. Na natureza, os
materiais se encontram normalmente misturados, como acontece, por exemplo,
com a água, o leite, o sangue e o solo. Isso explica a importância
que têm para a Química os processos de separação
de componentes de misturas, bem como as idéias e instrumentos
que permitem distinguir as propriedades das substâncias e das
misturas.
A diversidade dos materiais no mundo pode ser evidenciada pela variedade
de propriedades físicas e químicas que eles possuem. A
proposição de modelos representativos da estrutura interna
desses materiais auxilia na compreensão de suas propriedades.
Em outras palavras, os modelos de constituição e de interação
das partículas são construções poderosas
na promoção de um maior entendimento dos materiais e de
suas transformações. Essa é a razão pela
qual a compreensão de versões básicas desses modelos
deve constituir uma meta de aprendizagem a ser concretizada no Ensino
Fundamental.
A representação dos fenômenos através do
uso de fórmulas, nomes e equações pode ser proposta
progressivamente durante o estudo de temas e situações
nas quais esses instrumentos de identificação e caracterização
das substâncias possam adquirir relevância. Isso implica
compreender o uso de fórmulas, nomes e equações
como mediações necessárias para se promover o pensamento
e a comunicação dos fenômenos químicos.
Um dos motes para a Química no Ensino Fundamental é promover
discussões sobre materiais "naturais" e artificiais.
Existe hoje uma série de substâncias que não são
encontradas em estado natural. A curiosidade humana e as demandas da
indústria incentivaram a produção dessas substâncias.
Por outro lado, na atualidade, a escassez de recursos naturais e a preocupação
com o desenvolvimento sustentável, pautado em reflexões
e ações frente às questões ecológicas
e ambientais, justificam o investimento na produção de
novos materiais.
A produção de novos materiais é uma expressão
da capacidade humana de transformar a natureza. As reações
que permitem essas transformações constituem o centro
da atenção dos químicos. Muitas reações
químicas, naturais ou artificiais, são bastante familiares
no nosso dia-a-dia. Isso não significa, entretanto, que sejam
triviais.
No Ensino Fundamental, é desejável que o estudo das reações
parta de evidências macroscópicas que indicam a ocorrência
de alguma transformação. Ao compararmos as propriedades
que os materiais apresentam antes e depois de sofrerem uma transformação,
podemos concluir sobre a ocorrência de uma reação
química. Por outro lado, conhecendo as propriedades dos materiais
é possível fazer previsões sobre as transformações
a que eles estão sujeitos.
Mais uma vez, e a exemplo do que já propusemos para a Biologia,
acreditamos que é necessário promover uma ruptura com
abordagens consagradas de tratamento da Química na Educação
Básica. A Química vem sendo tratada com um número
excessivo de informações justapostas, prioriza a nomenclatura
das substâncias, bem como a representação de suas
estruturas e equações, em detrimento do entendimento de
seu significado. Lida-se com os conteúdos da Química como
se os nomes dos conceitos e representações pudessem anteceder
ou substituir sua compreensão. Por causa dessas características,
as abordagens tradicionais também enfatizam a memorização,
dando grande importância à capacidade do estudante de reproduzir
classificações tais como: reações de simples
troca, dupla troca; deslocamento e decomposição; funções
ácido, base, óxidos, sais e hidretos; fenômenos
físicos versus fenômenos químicos.
Aos estudantes não é dada a oportunidade de entender e
de estabelecer relações entre as teorias criadas para
explicar a constituição da matéria e o comportamento
físico e químico dos materiais. Isso decorre do modo como
se introduz a Química a partir dos modelos atômicos.
A noção de átomo, a idéia de descontinuidade
da matéria e a teoria de ligações, embora sejam
essenciais ao pensamento químico, são bastante abstratas
e solicitam um estudo introdutório dos fenômenos da matéria.
O estudo dos modelos atômicos desconectado do estudo dos fenômenos
conduz a uma falsa compreensão. É comum, por exemplo,
estudantes concluintes da Educação Básica confundirem
as idéias de átomos e moléculas e não entenderem
sua relação com os elementos e compostos. Mesmo os estudantes
que são capazes de usar esses termos com relativa facilidade
conferem a eles significados que estão distantes daqueles atribuídos
pela Química.
A
Física na educação em ciências do Ensino
Fundamental
O que justifica a presença da Física no currículo
de ciências para o Ensino Fundamental? Quando devemos iniciar
seu tratamento? Como fazê-lo e através de quais conteúdos?
Essas são algumas das questões que temos ouvido sistematicamente
nas escolas.
A Física é uma ciência que lida com um grande leque
de fenômenos naturais e tecnológicos: movimentos, sons,
luz, eletricidade, magnetismo, calor, ondas e outros. Por isso, não
é possível definir a Física indicando qual é
seu objeto de estudo, como fizemos anteriormente no caso da Química.
Tradicionalmente, a Física é vista como a ciência
que serve de alicerce para as carreiras científico- tecnológicas,
com especial destaque às engenharias. Os livros didáticos
vincularam fortemente os conteúdos de Física na Educação
Básica ao tratamento dado a essa disciplina nos cursos de engenharia.
Por isso, pouca ênfase foi dada às contribuições
da Física no tratamento de fenômenos naturais mais próximos
do cotidiano dos estudantes e de aspectos ligados à vida. A Física,
então, ficou reduzida a uma ciência "exata" e
formal, mais associada à Matemática do que a outras disciplinas
da área de ciências naturais.
Historicamente, os vários campos e focos de interesse que hoje
constituem a Física se desenvolveram de modo mais ou menos independente.
Só com muito esforço e através de teorias sofisticadas
e abstratas, esses campos foram sendo articulados entre si, o que ocorreu
principalmente a partir do século XIX e progrediu no século
XX, com a criação de duas grandes teorias: a mecânica
quântica e a relatividade geral. Nenhuma dessas duas grandes teorias
pode ou deve ser contemplada no Ensino Fundamental. Não se deve
pretender promover qualquer tipo de síntese teórica da
Física nesse nível de ensino.
Em vez disso, cremos na necessidade de resgatar a Física como
parte integrante das ciências da natureza. A Física pode
ser tratada no estudo de temas abordados por outras disciplinas que
compõem a área de ciências naturais. Junto à
Química, a Física é importante para o estudo das
propriedades e da constituição dos materiais. Na Astronomia,
a Física é necessária, pois o conceito de força
gravitacional é fundamental para explicar como vivemos sobre
a superfície do planeta Terra, caracterizado pela ciência
como uma "pequena esfera" cercada de espaço por todos
os lados, e situada no interior de um imenso universo.
A Física também pode ser explorada junto à ecologia,
introduzindo-se modelos para compreender processos de transformação
de energia que ocorrem em hidrelétricas e termelétricas,
ou a busca de alternativas energéticas para o Brasil.
Os conteúdos da Física no Ensino Fundamental promovem
uma compreensão ampliada dos processos característicos
da fisiologia animal, quando tratados, por exemplo, no contexto da investigação
das regulações térmicas nos seres vivos. Do mesmo
modo, estudos de luz e visão concorrem para o entendimento da
anatomia e fisiologia do olho.
Mesmo quando não é explicitamente vinculada à Biologia,
à Astronomia, às Geociências ou à Química,
e se apresenta como a única ou a principal disciplina que estrutura
conceitualmente o tema a ser desenvolvido, é desejável
que a Física não apareça como uma disciplina fechada
em si mesma. O ensino da Física no Ensino Fundamental não
se restringe a uma mera "preparação" para os
conteúdos desenvolvidos no Ensino Médio. Não é
necessário procurar situações e fenômenos
para "ilustrar o uso" de conceitos da Física. Em outras
palavras, não é necessário ir à realidade
para "iluminar a teoria": a teoria pode ser utilizada para
"iluminar a realidade".
Os estudantes do Ensino Fundamental têm vivo interesse sobre aspectos
da realidade diretamente ligados ao conhecimento físico. Parte
das dificuldades que os estudantes têm no aprendizado da Física
decorre da apresentação excessivamente abstrata e formal
de seus conteúdos. Modelos físicos abstratos tais como
os que tratam do movimento inercial, retilíneo e uniforme, das
superfícies sem atrito, de sistemas termodinamicamente isolados,
de cargas elétricas puntuais, entre outros, são construções
que resultaram de um longo esforço teórico na história
da Física e têm uma função muito específica
a cumprir no processo de formalização dessa disciplina.
Esses modelos abstratos são, obviamente, inadequados para introduzir
o seu estudo. Por isso, é fundamental procurar situações
reais, que suscitam diálogos com as elaborações
teóricas da Física.
Além disso, acreditamos na necessidade de se reduzir a sofisticação
e a abstração dos modelos da Física que são
apresentados e discutidos com os estudantes do Ensino Fundamental. Ao
tratarmos de circuitos elétricos simples, por exemplo, podemos
privilegiar o modelo fonte-consumidor, focalizando as transferências
de energia ao longo do circuito fechado, e imaginando a circulação
de uma corrente elétrica. Essa abordagem macroscópica
envolve como evidências observáveis o aquecimento dos fios
e resistores, o acendimento da lâmpada, a indicação
de aparelhos medidores, o aquecimento e desgaste de uma pilha, etc.
Evitamos, desse modo, partir do tratamento do modelo microscópico
de fluxo de elétrons livres no interior da rede cristalina dos
metais, quando submetidos a um campo elétrico.
Acreditamos, ainda, na necessidade de se evitar o uso de tratamentos
matemáticos. A Matemática é uma linguagem fundamental
na formulação das teorias físicas. Como linguagem,
ela estrutura o pensamento de quem a utiliza, assim como permite a comunicação
sintética de resultados alcançados na investigação
dos fenômenos naturais. Mas, a possibilidade de usar a Matemática
como linguagem, nessa dupla perspectiva, não está colocada
para os estudantes no Ensino Fundamental. Sendo assim, a introdução
ao estudo da Física deve evitar a matematização,
privilegiando a iniciação dos estudantes nas práticas
de investigação e produção de modelos da
realidade, o que pode tornar mais significativos os conceitos historicamente
desenvolvidos pela Física a partir dessas mesmas práticas.
Consideramos, por exemplo, inadequada a excessiva matematização
que geralmente acompanha o estudo dos movimentos, mesmo no nível
introdutório. Por isso, em vez de enfatizar aplicações
de fórmulas na resolução de problemas numéricos
associados, muitas vezes, a movimentos irreais ou improváveis,
insistimos na compreensão do significado dos conceitos de velocidade
e de aceleração, numa primeira abordagem introdutória,
traduzindo tais conceitos em palavras, e utilizando-os para interpretar
situações em que eles se mostram relevantes. Desse modo,
ao descrever os movimentos, somos também levados a perguntar
sobre as condições que os explicam.
De modo semelhante, no estudo dos fenômenos ópticos, achamos
necessário evitar a abordagem de diagramas de formação
de imagens em diversos tipos de espelhos e lentes, assim como de equações
que permitem prever a posição e características
de imagens formadas. Sabemos que muitos estudantes lidam com os diagramas
de formação de imagem sem ser capazes de relacioná-los
aos fenômenos que eles supostamente representam. Por essa razão,
achamos melhor privilegiar a idéia da luz como entidade que se
propaga no espaço, que é parcialmente refletida e absorvida
por objetos à nossa volta e que desencadeia o fenômeno
da visão. Entendemos que esse modelo de luz e visão é
básico e fundador para quaisquer outros tratamentos no campo
da óptica.
Astronomia
e Geociências na educação em ciências do Ensino
Fundamental
Entender a Terra e suas transformações implica coordenar
o olhar dirigido para fora, característico da Astronomia, com
o olhar dirigido para a estrutura da Terra e para o dinamismo de seus
processos, que caracterizam as Geociências.
A importância de se incluírem conteúdos de Astronomia
no currículo de ciências pode ser justificada pelo fascínio
que os fenômenos celestes exercem sobre os seres humanos, e sobretudo
pela contribuição que esses conteúdos podem trazer
para promover os estudantes à condição de sujeitos
de sua cultura. É inegável a importância da Astronomia
para a compreensão de como foram forjadas as representações
atuais de nossa cultura sobre a Terra, como planeta, e sobre o Universo
ao seu redor.
Essa compreensão deve se dar de modo progressivo, com o estabelecimento
de um número cada vez maior de relações entre a
Terra e os elementos do espaço ao seu redor. O primeiro passo
nesse processo é garantir a apropriação do modelo
de Terra esférica. Em um segundo momento, o foco recai sobre
as características do sistema Sol-Terra- Lua e suas conseqüências
para a vida na Terra, entre as quais se podem destacar as estações
do ano e as fases da Lua, associadas ao fenômeno das marés.
A questão "como tudo começou" e a apresentação
de noções atuais sobre a origem e evolução
de estrelas, dos planetas e do Universo é um terceiro passo no
avanço dessa discussão. Em todos esses níveis de
abordagem é necessário resgatar motivações,
desafios, estratégias e procedimentos usados pela ciência
para produzir o conhecimento de que hoje dispomos sobre a Terra e o
Universo.
Algo importante, mas não tão fácil de viabilizar,
é a realização de atividades de observação
dos céus mediadas pela construção de modelos. Há
dificuldades em se realizar observações astronômicas
nas regiões urbanas, onde a observação dos céus
é prejudicada tanto pela existência de construções
que impedem a vista do horizonte quanto pela grande quantidade de luz
que se dispersa no ar durante a noite. Por outro lado, a observação
dos céus continua a exercer grande fascínio sobre as pessoas,
embora já não tenha mais qualquer sentido prático
para a vida urbana.
Os conteúdos de Geociências contribuem para a apresentação
de evidências de transformações nos ambientes da
Terra, em um movimento que amplia a escala de tempo na qual essas transformações
são consideradas, desde o tempo vivido pelo estudante até
o tempo geológico. Uma dessas transformações se
refere à formação de diversos tipos de solos, estudados
em suas interações com os microrganismos, os vegetais
e o ambiente como um todo.
O estudo das transformações na vida e na Terra é
possível graças aos indícios geológicos
e aos fósseis. Os rumos de nosso presente e futuro estão
essencialmente ligados ao reconhecimento dos padrões de mudança
identificados no passado. Assim, por exemplo, temos evidências
de que, ao longo de muito tempo e, mesmo sem a intervenção
humana, grandes florestas converteram-se em desertos. Todavia, as transformações
no ambiente terrestre têm sido potencializadas pela ação
humana. Seu impacto demanda a necessidade de estabelecer projetos de
desenvolvimento sustentável em termos radicalmente distintos
dos atuais. Vê-se, portanto, que a inclusão de conteúdos
de Geociências no currículo de ciências deve se dar
em comunicação com os conteúdos de outras disciplinas,
de modo similar ao que sinalizamos no modo interdisciplinar de se tratarem
conteúdos químicos, físicos e biológicos.
Avaliação
da aprendizagem
A questão da avaliação adquire conotações
muito diferentes quando se considera o tipo de ambiente de aprendizagem
no qual irá se desenvolver. O tipo de educação
dialógica que defendemos aponta para um ambiente no qual se oferece
um repertório diversificado de atividades aos estudantes.
À medida que o estudante deixa de ter a postura passiva que normalmente
se apresenta em uma abordagem tradicional, baseada em cópias,
repetição memorizada, respostas padronizadas a exercícios
de fixação, e passa a desempenhar um papel mais ativo
na elaboração e explicitação do conhecimento
produzido, ricas possibilidades estão colocadas no âmbito
da avaliação escolar.
O estudante pode ser chamado a produzir textos a partir da discussão
de problemas e situações em pequenos grupos, a argumentar
e defender pontos de vista, a estabelecer critérios para tomadas
de decisão, a buscar fontes de informação e a organizar
as informações disponíveis. O processo de desenvolvimento
das habilidades associadas a cada uma dessas atividades precisa ser
acompanhado por processos de avaliação, de modo a compor
indicadores de progresso dos estudantes, ou ainda sinalizar as principais
dificuldades e obstáculos a serem superados.
Inicialmente, as produções dos estudantes costumam ser
mais descritivas, pouco argumentativas e simplificadoras. Entretanto,
as intervenções do professor podem auxiliar os estudantes
a avançar. O professor pode fazer isso indicando lacunas, falsas
identidades ou problemas de construção dos textos de autoria
dos estudantes. A identificação de progressos pode se
dar através da comparação entre as produções
iniciais e outras mais recentes.
Não se trata certamente de corrigir todas as atividades realizadas
pelos estudantes, o que tornaria exaustiva e inviável qualquer
tentativa de acompanhar os movimentos de construção de
conteúdos propostos. Para isso, é preciso, certamente,
identificar, selecionar e propor determinadas atividades como possíveis
sínteses em momentos diferentes ao longo do curso.
A observação cotidiana que o professor realiza em momentos
de trabalhos coletivos e individuais dos estudantes propicia ricas fontes
de informação, inclusive no campo das atitudes e condutas.
É importante considerar o desenvolvimento de procedimentos e
atitudes como o respeito pelo outro, o saber ouvir, o posicionamento
diante dos debates e a capacidade de explicitar idéias, valores,
crenças e propostas de intervenção. Com isso, não
se pretende normatizar condutas ou comportamentos, mas permitir sua
identificação e possíveis intervenções
por parte do professor e da escola. Dentro dessa concepção,
o professor atua como um observador formativo, constituindo uma referência
fundamental para os estudantes.
A avaliação pode, ainda, ultrapassar os limites de um
olhar centrado exclusivamente nos aspectos de aprendizagem e incluir
os processos de ensino a eles relacionados, conduzindo a uma desejável
negociação entre expectativas e interesses dos estudantes
e demandas de formação.
Carmen
De Caro Martins, Helder Figueiredo de Paula, Mairy Loureiro, Maria Emília
Caixeta Lima, Nilma Soares da Silva, Orlando Aguiar Junior, Ruth Schimitz
de Castro, Selma Moura Braga
Professores e pesquisadores da UFMG.
Fonte: REVISTA PRESENÇA PEDAGÓGICA o v.9 n.51 o mai./jun.
2003