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UDEMO | 07/11/17 | Atualizado em 7/11/17 11:28


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 7 de novembro de 2017.

Para os 'anti-natalistas', procriar é cometer um dano sobre os filhos

João Pereira Coutinho

O leitor pensa em ter filhos? O filósofo David Benatar não aconselha. Benatar é um representante da corrente "antinatalista" e a sua mensagem é fulminante: existir é sempre um dano; donde, procriar é cometer um dano sobre os filhos.

O ensaio foi publicado no excelente "Aeon" (repito: o site é um paraíso para quem gosta de massa cinzenta) e o argumento de Benatar merece leitura.

O autor sabe que não está a ser original. Lamentações sobre a existência fazem parte da própria existência. Lemos o Eclesiastes, Schopenhauer, Cioran —e essa lamentação encontra expressão literária contundente.

E, nas nossas vidas correntes, quando as infelicidades suplantam as felicidades, qualquer cristão olha para o céu (ou para os pais) e questiona se valeu a pena ter nascido.

O problema, afirma David Benatar, é que uma análise empírica da vida comprova que infelicidades são sempre maiores do que felicidades.

Eis o seu primeiro argumento antinatalista: somos muitas vezes ignorantes sobre as "assimetrias empíricas" que definem a nossa condição. Exemplo: as nossas piores dores serão sempre superiores aos nossos melhores prazeres. Como questiona o autor, alguém está disposto a suportar um minuto de tortura para ter uma uma hora de puro deleite?

Igual raciocínio pode ser aplicado à vida banal: há pessoas que sofrem dor crônica; mas ainda não apareceu ninguém para falar de prazer crônico.

E, quando subimos a escala da infelicidade, a vida não é um filme de Hollywood. Todos, em maior ou menor grau, seremos vítimas de injustiças, invejas, humilhações. Alguns serão vítimas de coisas piores —doenças graves, acidentes, crimes, guerras. Sem falar do óbvio: se a morte é o maior dano, ninguém escapa a essa fatalidade.

Esse último pensamento pode soar bizarro: para quem defende que o melhor é não existir, a morte deveria ser a suprema consolação.

David Benatar argumenta, e bem, que existe uma diferença importante entre "desejar nunca ter nascido" e "desejar morrer". E oferece um caso trivial: podemos assistir a um mau concerto sem abandonar a sala. Mas, se soubéssemos antecipadamente que o concerto seria ruim, não teríamos entrado.

E para os que têm a sorte de levar vidas satisfatórias ou até boas?

David Benatar não se demove ou comove: mesmo vidas satisfatórias ou boas serão sempre inferiores ao ideal de uma vida feliz.

Admiro a agilidade utilitarista de Benatar. Mas a lógica do seu raciocínio só funciona se partilharmos a sua "concepção de vida". Não partilho. David Benatar sofre de duas limitações óbvias.

A primeira é a crença de que a vida é uma questão de tudo ou nada: ou obedece ao ideal ou não merece existir. Pois bem: o fato de uma vida não obedecer a um ideal de perfeição não demonstra, "ipso facto", que a falha está na vida; pode demonstrar o inverso —o erro está no ideal.

Mas a segunda limitação é mais relevante que a primeira: Benatar não acomoda a possibilidade de existirem vidas que suplantam o velho cálculo hedônico de dores/prazeres.

Pois bem: a história —ou o cotidiano— é a refutação desse cálculo. Quantos seres humanos já não sofreram (longamente) e morreram (brutalmente) por amor a uma causa, a uma família —a alguém?

Aliás, não é preciso ser tão dramático: basta aceitar, teoricamente que seja, que os nossos filhos podem ter uma visão distinta das suas existências. Eles vão sofrer; eles vão morrer.

Mas, ao contrário do que argumenta Benatar, para alguns deles o fato de terem vivido —e de terem encontrado, brevemente que seja, momentos de felicidade— pode ser mais importante do que as misérias majoritárias. Quem confunde a vida com a matemática não entende grande coisa da vida (ou da matemática).

O próprio Benatar, em comentário sobre o homicídio, aceita esse "direito à subjetividade". Diz ele: é proibido matar, mesmo por razões altruístas, porque nunca saberemos se a outra pessoa lamenta mesmo a sua vida. O que é válido para o "homicídio altruísta" é válido para a procriação: somos apenas juízes de nós próprios –e nem sempre com a competência desejável.

"O que é belo há de ser eternamente / Uma alegria", escreveu John Keats na tradução de Augusto de Campos. "Não morre; onde quer que a vida breve / Nos leve".

Pelos filhos devemos brindar: que pelo menos encontrem algo de belo, onde quer que a vida breve os leve.


 

 

 
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