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UDEMO | 04/09/17 12:20 | Atualizado em 4/09/17 12:30


A matemática que pode derrotar monstros e cortar cartas

No grande clássico grego "Odisseia", de Homero, concluída a guerra de Troia, o herói Ulisses inicia uma longa de viagem de regresso à sua cidade, Ítaca. São dez anos de aventuras pelo Mediterrâneo, que vêm se somar aos dez anos da guerra. Em casa, Ulisses já era dado como morto, e a beleza e riqueza de sua esposa, Penélope, atraem pretendentes cada vez mais atrevidos. Acreditando sempre na volta do marido, ela inventa um pretexto astucioso para não casar com nenhum deles: antes, precisa terminar de tecer a mortalha de seu sogro. Mas tudo o que Penélope tece durante o dia, desfaz à noite. E assim se passam duas décadas.

Esta é uma situação fora do comum. Normalmente, o que queremos é terminar as tarefas logo que possível e isso requer esforço. "Enrolar" para não acabar costuma ser mais fácil, inclusive há pessoas que são ótimas nisso. Como o meu filho, quando o assunto é comer a sopa... Mas existem situações em que não terminar a tarefa pode ser impossível.

Suponha uma caixa com certa quantidade (finita) de bolas de sinuca, cada uma com um número (1, 2, 3...). A tarefa é retirar as bolas da caixa, uma a uma. Você –lembre que não quer acabar a tarefa!– só tem o direito de substituir cada bola retirada por uma quantidade qualquer de bolas, desde que todas tenham números menores. Por exemplo, se tirar da caixa uma bola 5 pode colocar lá a quantidade que quiser de bolas 1, 2, 3 ou 4. Quando tira uma bola 1 não pode colocar nenhuma de volta, já que não existe bola com número menor.

Terminar esta tarefa pode demorar muito tempo: afinal, a cada vez é possível colocar na caixa quantas bolas quiser.

No entanto, a matemática garante que, faça o que fizer, mais cedo ou mais tarde a caixa será esvaziada! Consegue entender e explicar por quê?

Em tempos longínquos, o semideus Hércules precisou realizar doze tarefas, para mostrar o seu valor e ser recebido na morada dos deuses. Uma delas era matar a Hidra de Lerna, um monstro com sete ferozes cabeças de serpente. O problema era que cada vez que cortava uma cabeça surgiam duas novas! Hércules acabou vencendo. Mas descobrimos recentemente que isso não resolveu o problema, pois a Hidra deixou filhotes! Precisamos encontrar um novo herói, uma leitora ou leitor com braço forte e coração valente, para livrar a humanidade deste novo flagelo.

Os filhotes são muito piores do que a hidra original: podem ter qualquer número (finito) de cabeças e, além disso, de cada cabeça podem nascer pescoços que sustentam mais cabeças, de onde nascem mais pescoços etc. Francamente, cara leitora, estimado leitor, não ouso apresentar neste jornal de família uma foto dessa aberração! Apenas observe o diagrama e use a imaginação. Se tiver coragem...

Para enfrentar tal monstro, o leitor dispõe de uma espada, com a qual pode cortar qualquer cabeça do "topo", ou seja, que não tenha pescoço nascendo nela. Ao fazer isso, o pescoço que sustenta essa cabeça também morre. Infelizmente, o pescoço imediatamente abaixo e todas as cabeças que sustenta duplicam-se instantaneamente, conforme descreve o diagrama.

Será que os coloquei em situação ainda mais desesperada que a de Hércules? Claro que não!

Os leitores desta coluna dispõem de uma arma que o herói nem imaginava (a educação básica dos semideuses deixava muito a desejar, infelizmente): a matemática. Ela garante que, não importa como vá cortando as cabeças da hidra, mais cedo ou mais tarde vai acabar com todas. Isto é mais difícil de provar do que no problema anterior, mas pode confiar na matemática: no final, o monstro morre e o herói vence!

(Bom, na dúvida, talvez valha a pena começar praticando com os diagramas, antes de enfrentar as hidras de carne e osso).

Para terminar, vou dar uma tarefa mais simples, que os leitores podem realizar no conforto e segurança de seus lares. Só precisa de um baralho –são 52 cartas no total, mas só vamos usar 45 e não importam quais. Separe as 45 cartas em pilhas, como preferir. Por exemplo, podem ser quatro pilhas, com 3, 20, 9 e 13 cartas. Pode até ser uma pilha só, com 45 cartas, ou 45 pilhas, cada uma com uma carta. A escolha é toda sua.

Em seguida, retire uma carta de cada pilha e forme com essas cartas uma nova pilha. Repita essa operação até chegar à situação em que há exatamente nove pilhas, com 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 cartas. Nesse momento a tarefa acaba, já que, a partir daí, mais nada muda na operação que descrevi.

Não esqueça que o seu objetivo é não acabar a tarefa nunca. Consegue? Caso contrário, qual é o número máximo de rodadas que consegue fazer antes de terminar? O que muda se no lugar de 45 cartas usar outro número? Respostas são bem-vindas pelo e-mail viana_folhasp@gmail.com.

Estes problemas foram estudados por diversos matemáticos. Aprendi sobre eles, muito tempo atrás, com o grande divulgador da matemática Martin Gardner.

 

Fonte: MARCELO VIANA - UOL EDUCAÇÃO – 01/09/2017 – SÃO PAULO, SP


 

 

 
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