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UDEMO |8/08/17 10:35 | Atualizado em 8/08/17 10:38


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 8 de agosto de 2017.

Quando foi que os nossos supermercados se transformaram em farmácias?

João Pereira Coutinho

Começa a ser difícil comprar comida. Não falo da Venezuela. Falo de Portugal. Da minha cidade. Do meu bairro. Do supermercado do bairro. É uma tendência que se foi agravando: no início, havia uma prateleira modesta de alimentação orgânica. Depois, vieram mais duas. Hoje, há um corredor inteiro onde também existem biscoitos sem glúten, leite sem lactose e bolos sem açúcar.

Quando foi que os nossos supermercados se transformaram em farmácias? Questionei o dono sobre o assunto. Resposta dele? É a demanda, estúpido!

Admito que sim. E admito que existam razões de saúde que expliquem a medicalização da comida. Mas pergunto: será que a minha cidade foi tomada de assalto por uma população doente? Ou existe aqui um fenômeno social que suplanta as maleitas da carcaça?

Elizabeth Currid-Halkett responde à pergunta. Li o seu "The Sum of Small Things" (a soma das pequenas coisas), um tratado sobre a nova elite dominante. Essa elite tem nome: "classe aspiracional".

Conta a autora que, nos Estados Unidos, essa elite já não perde tempo com a ostentação material do passado (o "consumo conspícuo" de que falava Veblen). Isso é coisa de classe média arrivista que ainda precisa de roupas de grife ou carros absurdamente caros (e vulgares) para fins de afirmação social.

A nova elite prefere o "consumo discreto", ou seja, o consumo daquilo que não se vê.

A educação é o melhor exemplo: um curso em Princeton é tão caro como mil brinquedos de luxo; mas é mais exclusivo –cultural e até espiritualmente falando. O luxo se democratizou; Princeton ainda não.

O mesmo vale para seguros de saúde (exorbitantes) ou planos de aposentadoria (idem): investimentos "invisíveis" que podem não trazer a "gratificação instantânea" de outros padrões de consumo; mas que garantem melhor saúde e melhor velhice.

E quando é preciso comprar realmente "coisas" (o horror! o horror!), a "classe aspiracional" segue o mesmo padrão. Só arrivistas compram Ferrari. A verdadeira elite compra "com consciência" (um eufemismo para carros elétricos, por exemplo). Só arrivistas compram mansões com piscina e "court de ténis". A verdadeira elite prefere o apartamento na cidade, de preferência perto do trabalho, porque a cidade é o espaço insubstituível para cultivar e expandir o "capital cultural".

E, na hora do jantar, a abundância perde para a distinção: comer bem é mais importante do que comer muito. Moral da história?

A professora Currid-Halkett está alarmada. Segundo ela, a desigualdade criada pela "classe aspiracional" é muito mais difícil de suplantar do que as tradicionais desigualdades materiais. Entendo o alarmismo. Mas uma forma de não ceder a ele seria ler um autor que, sintomaticamente, está ausente da obra. Falo de Norbert Elias e do clássico "O Processo Civilizatório".

Conta Elias que o nosso mundo não nasceu em 1789. Nasceu nos alvores do século 16, com o colapso da sociedade feudal e a quebra da unidade cristã. A emancipação do "indivíduo" foi, essencialmente, a entrada do indivíduo na "sociedade civilizada".

No século 16, tal como no nosso século 21, havia guias para tudo: como falar; como olhar; como vestir; como comer; como viajar –verdadeiros manuais de autoajuda para que a aristocracia da província se aproximasse do requinte da corte. Esse mimetismo continuou no século 17, sobretudo entre uma burguesia que tinha excesso de dinheiro e deficit de maneiras.

O processo civilizatório, explica Elias, nunca mais parou na sua dinâmica ascensional: as classes médias imitam as classes altas; e as classes altas, sempre em busca de comportamentos ou símbolos distintivos, lançam novas modas –"ad infinitum".

Hoje, a "classe aspiracional" pode simbolizar o pináculo da sociedade. E os seus requintes podem parecer tão inatingíveis como os códigos da nobreza cortesã no século 16.

Mas o processo civilizatório não para: a massificação do ensino universitário vai continuar; o medo da doença vai pesar cada vez mais nos orçamentos das famílias; e, em matéria gastronômica, o modesto supermercado aqui do bairro já caminha rumo ao futuro.

Minha secreta esperança é que a elite, novamente copiada pelas massas, altere seus hábitos e retorne ao passado transgressivo. Uma vida sem glúten, sem lactose e sem açúcar não dá.

 


 

 

 
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