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UDEMO |23/08/16 12:36 | Atualizado em 23/08/16 12:36


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 23 de agosto de 2016.

Processos de transição

Rosely Sayão

Passamos o dia em processos de transição: do estado de sono ao de vigília, da roupa confortável à de trabalho, do ambiente protetor de casa ao espaço público. Durante um único dia, passamos por muitas dessas transições quase que automaticamente, sem termos de pensar sobre elas. Algumas vezes as transições são penosas, porém, como adultos, suportamos todas elas e sempre seguimos em frente.

Poucas vezes pensamos que, para os mais novos, essas transições são bem mais difíceis do que para nós. Exigimos que eles se comportem como nós, ou seja, que aceitem as transições sem resistirem tanto a isso. As resistências deles são encaradas como teimosia, transgressão ou rebeldia. Contudo, o que eles precisam é de nossa intervenção colaborativa para que, aos poucos, aprendam a passar por essas transições sem muito sofrimento.

Uma das passagens mais difíceis é a que as crianças têm de fazer diariamente entre a casa e a escola. Colocar o uniforme, ir para a escola e ouvir o sinal para as aulas não são suficientes para que elas realizem tal transição. Elas precisam de bem mais do que isso, porque o que está em jogo nessa passagem é um processo bastante complexo.

As crianças têm de deixar um local em que o eixo das relações é o afetivo, e ir para outro em que o eixo da convivência é impessoal; passam de um ambiente com normas e princípios próprios, onde ela é única, para estar em um outro com normas e princípios coletivos onde ela é apenas mais uma entre tantas outras. E essas passagens exigem rituais que facilitem sua realização. Quando eles não ocorrem, muitas crianças não fazem a passagem, ou seja, comportam-se na escola como costumam viver em casa.

A escola deveria, portanto, construir rituais para facilitar essa transição para as crianças. Essa é uma das maneiras de ajudá-las a saírem do lugar de filha/o e passar para o lugar de aluna/o. Mas, o que muitas escolas fazem é exatamente o oposto, dificultando a transição para as crianças. Dou apenas dois exemplos que já mostram essa questão: chamar a professora de "tia" e os colegas de classe de "amigos" só faz com que as crianças permaneçam fixadas no ambiente familiar e, por isso, tenham dificuldades em passar ao ambiente público.
Outra transição que não é fácil para as crianças é recolher-se para dormir. Deixar de ficar acordado e em companhia de pessoas com quem têm um intenso vínculo afetivo para o estar sozinho e recolhido, da situação de realização de atividades para a de repouso, não é simples para elas. É por isso que precisam de ajuda. Portanto, as famílias podem colaborar criando rituais que apontem para a criança que ela está para entrar em estado de repouso e recolhimento solitário.

Diminuir a intensidade de atividades, de ruídos e de luminosidade da casa, por exemplo, já sinalizam para elas o início do processo da transição; realizar a higiene pessoal para o repouso, trocar-se e ouvir histórias são outros exemplos que podem fazer parte do ritual.

Aprender a ficar sozinha mesmo acordada prepara a criança para dormir. Fazer com que ela durma já é outra história, porque quase ninguém consegue controlar essa questão, não é verdade?

Precisamos lembrar sempre que a criança ainda está em formação, construindo seus recursos para enfrentar a vida.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

 

 
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