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UDEMO | 18/07/2016 09:36 Atualizado em 21/07/16 10:07


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 18 de Julho de 2016.

ROSELY SAYÃO

Aos poucos, perdemos a imagem social compartilhada da infância

Chegamos a um tempo em que é preciso ensinar adultos a olharem para nossas crianças para compreendê-las no que fazem e sentem, dar dicas a respeito do que elas podem fazer e do que ainda não podem, por falta de maturidade, mostrar que muitos comportamentos são absolutamente naturais nessa fase da vida. Aos poucos, perdemos a imagem social compartilhada da infância e, consequentemente, de como é uma criança.

Faz décadas que estudiosos têm alertado para o desaparecimento da infância como a conhecemos na modernidade. Uma das consequências da mudança do sentido da infância é o fato de muitos adultos não saberem mais conviver com a criança, não suportarem mais seus comportamentos tão típicos.

O que quer uma criança? Viver e experimentar tudo o que é possível para conhecer o mundo em que vive da sua maneira, e não apenas pelo olhar e compreensão do adulto.

Isso significa, por exemplo, que a criança fará aquilo que já lhe disseram inúmeras vezes para não fazer. É curiosidade, é vontade de entender, de checar, de pesquisar. É insistência, característica tão escassa em nosso tempo!

A mãe de um garoto de três anos cheio de vida –que a escola, por sinal, chama de "criança agitada"– contou que tem plantas em casa e que sempre explicou ao filho que planta é vida, que precisa ser cuidada para não morrer. Num belo dia, o menino arrancou da terra a maioria das plantas. "Por que ele fez isso se eu já conversei com ele tantas vezes sobre a importância de cuidar e não de destruir?", perguntou-me ela, decepcionada.

Porque ele tem três anos e, provavelmente, quis ver por si mesmo o que significava aquilo que a mãe lhe dizia. Esse fato não é suficiente para afirmar que ele é uma criança teimosa, agressiva e com impulso destrutivo, como sugeriu a mãe.

Tampouco permite dizer que é uma criança agitada. Ele tem fome de viver!

A criança se considera soberana naquilo que quer por um motivo simples: seus impulsos a controlam, e só com seu desenvolvimento é que poderá vir o aprendizado de que ela pode controlá-los. É por isso que uma criança pequena empurra, morde ou bate em outra que está com um objeto que ela quer no momento ou que a atrapalha.

Mas, pensando melhor, é possível que nossas crianças duvidem dessa possibilidade de aprender a conter impulsos que afetam os outros. É que elas estão totalmente expostas ao mundo adulto e percebem com clareza que estes não controlam seus impulsos destrutivos, não é?

Vi uma peça publicitária de um canal de filmes da televisão a cabo que mostra bem o tipo de relação que temos tido com as crianças. No primeiro tempo, o canal apresenta a vida da mãe nas férias dos filhos sem o canal: criança chorando, teimando, fazendo manha, berrando etc., e a mãe desesperada. Depois, com a compra do canal, a criança se acalma e a mãe fica tranquila. Criança boa é criança quieta, que não dá trabalho, é isso?

Vamos aceitar: é prerrogativa da criança teimar, desobedecer, ser impulsiva, querer fazer o que não pode nem deve, reclamar, resistir, exigir, reivindicar etc.
É dever dos adultos responsáveis fazer sua contenção, sua proteção –de perigos que ainda não reconhece e de si mesma–, cuidar de sua formação e jogar, diariamente, gotas de realidade nela.
 


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

 

 
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