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UDEMO | 05/04/2016 12:15| Atualizado em 14/04/16 16:02


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 05 de Maio de 2016.

Se deixada livre, criança comerá algo que gosta até passar mal

Está bem difícil para nós, adultos, ter nossa boca sob controle. Justo nós, que deveríamos ter bem desenvolvido –e usar sempre– o mecanismo de autorregulação, ou seja, a capacidade de conter um forte impulso, seja ele qual for. Ora não conseguimos conter o que sai de nossa boca, ora não controlamos o que entra por ela. E é desse último caso que vou tratar hoje.

A cozinha está em alta. Não é possível zapear pelos canais de televisão, abertos e/ou fechados, sem passar por, pelo menos, três ou quatro programas de culinária, quando não mais. São reality shows na cozinha, competições culinárias, aulas com menus e receitas etc. Para todos os gostos e bolsos.

Isso quer dizer que temos ido mais à cozinha, que temos comido melhor? Não. Esses programas servem, principalmente, para estimular a vontade de comer, de mastigar e alimentar a nossa gula. Um estudo publicado em uma revista científica apontou que um quinto da população brasileira está obesa!

Não temos tradição de comer regularmente legumes, verduras e frutas. Nossas preferências são as carnes, em geral gordurosas porque ficam mais saborosas, massas, frituras etc. Desde sempre nossa alimentação foi essa, mas o nosso tipo de vida mudou. E, agora, nossa capacidade de contenção está muito baixa. Esse é mais um indício da infantilização do mundo adulto, por sinal.

E as crianças, o que têm aprendido conosco? Não vou tratar da obesidade infantil, mas de uma importante causa dela: a falha na construção do mecanismo de autorregulação. Nos primeiros cinco anos de vida das crianças, percebemos com clareza que elas não conseguem, ainda, resistir a um impulso, e este nem precisa ser dos mais fortes. É por isso que elas fazem birra, batem, mordem, fazem o que sabem que não poderiam fazer, por exemplo. É aos poucos que a criança aprende a conter impulsos que são socialmente inadequados ou que a prejudicam.

Você conhece o ditado popular que afirma que "a criança é um saco sem fundo"? Isso diz respeito à falta de controle dela sobre si mesma e à falta de autoconhecimento. A criança não é capaz de sentir que está saciada, por exemplo. Se ela gosta de comer um alimento e for deixada livre para comer a quantidade que quiser, comerá até passar mal. Um amigo tem viva a lembrança de ter sido hospitalizado aos oito anos por ter comido quase uma caixa inteira de uvas!

As crianças têm percebido que não tem sido importante, para nós, o ensinamento do autocontrole. Aliás, elas percebem com muita sagacidade que nós mesmos não nos importamos em usar essa capacidade. E, se nós não a usamos cotidianamente, por que haveriam elas de usar?

Desenvolver a capacidade de, voluntariamente, conter impulsos, por mais fortes que eles sejam, que podem prejudicar a própria pessoa ou o outro, é fundamental para o crescimento, para o bom desenvolvimento. Eu diria que esse aprendizado é tão importante quanto outros aos quais os pais se dedicam com fervor.

Para ensinar o autocontrole aos filhos é preciso esforço, muito esforço pessoal. E parece que esforçar-se é algo que sabemos fazer bem na busca do êxito e do sucesso. Será que gastamos todo nosso potencial nesses itens e ficamos zerados para o esforço e a paciência necessários para tal ensinamento aos mais novos? Aí está uma pergunta que merece nossa reflexão! 


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

 

 
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