Leituras

 

 

UDEMO | 05/08/14 15:34 | Atualizado em 29/08/14 9:21


Matéria publicada na Folha de São Paulo, 05 de agosto de 2014.

Brincar de faz-de-conta

ROSELY SAYÃO

Cinco fotos de situações ocorridas nos últimos dias dão para fazer uma página de um álbum que pode ter o título "Retratos da Vida".

Foto 1: Uma mulher joga o filho de dois anos contra a parede, por ficar irritada com o fato de ele mexer em seu aparelho celular sem permissão. O garoto morreu. Foto 2: Um homem é o principal suspeito de matar o filho de dois anos com golpes de jiu-jitsu durante o banho do garoto. Foto 3: Crianças entre dois e três anos são encontradas na creche presas às cadeiras por lençóis e fraldas, porque a responsável saíra para comprar créditos para seu celular. Foto 4: Um vídeo na internet mostra uma criança entre dois e três anos passeando pelo parapeito da janela de um apartamento situado mais ou menos no décimo andar do prédio. Foto 5: Um garoto de 11 anos perde um braço por ter se aproximado demais da jaula de um tigre para provocá-lo durante um passeio ao zoológico.

Todo os comentários sobre as cinco notícias postados na rede têm algo em comum: culpam os pais dessas crianças. Mas será mesmo que esses pais são os únicos responsáveis pelos fatos ocorridos, seja por problemas com drogas, mentais ou de descaso com os filhos? Convido você, caro leitor, a refletir também sobre o contexto social e cultural de nosso entorno na atualidade, e a entender por que cada um de nós está implicado nessas fotos.

Quando uma criança dá trabalho, consideramos que ela tem algum problema. Levamos a criança a médicos das mais variadas especialidades, a psicólogos, a psicopedagogos, etc. Enfim, a qualquer tipo de profissional que possa dar um jeito nela.

Cuidamos da criança mais ou menos como cuidamos de um carro: quando ele quebra, levamos à oficina mecânica. Vivemos tão intensamente nossa própria vida, que as crianças não podem nos dar trabalho algum. Queremos apenas desfrutar das crianças, não nos ocuparmos com elas!

Nossa sociedade adulta, infantilizada, adora brincar de faz-de-conta: fazemos de conta que cuidamos muito bem de nossas crianças. Criamos leis contra a publicidade infantil e contra a palmada, equipamos nossos carros com travas de porta e cadeirinhas especiais para o transporte, as janelas de casa são protegidas por redes, etc.

Entretanto, cresce o número de crianças esquecidas em carros, nas escolas, deixadas em casa sozinhas. Aumenta o índice de crianças obesas. Crianças maiores têm sofrido mais acidentes, porque não sabem fazer avaliação de risco das situações que exploram. Esses são alguns exemplos dos efeitos que o brincar de "faz-de-conta que cuidamos de nossas crianças" produz.

Achamos melhor pensar que os pais dessas crianças, e apenas eles, são responsáveis e/ou culpados por tudo o que acontece com elas, não é? Criança apresenta algum problema na escola? Melhor chamar os pais. Criança entra em uma situação perigosa, de risco? Melhor avisar os pais.

As cenas registradas em vídeos por pessoas que transitavam pelo zoológico enquanto o garoto de 11 anos desafiava a morte sem saber são exemplares para nos mostrar como as crianças não nos afetam. Por que ninguém tirou o garoto de lá? Por que apenas avisar o pai ou dizer "cuidado aí, garoto" deu a sensação de dever cumprido?

Todas as crianças são responsabilidade de cada um de nós. Elas são o nosso futuro. E serão o futuro, mas antes precisam sobreviver a nós.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

 

 
Filie-se à Udemo