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Superman, o professor, existe!
Matéria publicada na Revista Veja, Edição 2207 - 9 de março de 2011

Geoffrey, o Superman

O educador Geoffrey Canada é a estrela de um documentário demolidor para o sistema de ensino público americano ao apontar o mau professor como o grande responsável pelo fracasso dos alunos

André Petry, de Nova York

“Sempre achei que a salvação era o Superman. Um dia, minha mãe me disse que o Superman não existia. Eu tinha uns 8 anos. Minha mãe disse: 'Não, não, não tem Superman nenhum'. Comecei a chorar, porque achava realmente que o Superman viria nos salvar do caos, da violência do perigo. Mas não havia herói nenhum. Descobrir que ninguém viria nos socorrer foi uma das experiências mais chocantes da minha infância." O educador Geoffrey Canada, 59 anos, cresceu no sul do Bronx, em Nova York, nos anos 50 e 60. Terceiro de quatro irmãos criados apenas pela mãe depois que o pai, alcoólatra e eterno desempregado, abandonou a família, o garoto Geoffrey Canada convivia diariamente com a pobreza e a violência. Em seu livro Fist Sfick Knife Gun ("Soco Porrete Punhal Revólver"), Canada fala do Superman e da sua biografia. Aos 6 anos, ele foi assaltado pela primeira vez, por um menino dois anos mais velho. Aos 7, viu seu irmão ser roubado. Aos 8, soube que o Superman não existia. Aprendeu a quebrar garrafa no meio-fio para cortar a carne do inimigo "como faca quente na manteiga". Fazia arma de antena de carro e virou mestre no uso de um canivete achado na sarjeta, do qual, durante anos, não se separou. Não matou nem foi preso, mas boa parte dos seus amigos de infância está na prisão ou já morreu — inclusive um de seus irmãos, morto aos 22 anos. No Bronx, Canada sentiu na pele a sordidez da violência e acompanhou a transição do inferno ao caos: até os anos 70, as armas eram faca e garrafa, e as drogas, heroína e cocaína. Depois, devastadoramente, vieram o revólver e o crack.

Em algum momento de sua trajetória, Canada resolveu ser ele mesmo o Superman das crianças pobres e sem futuro. Formou-se na Universidade Harvard e tornou-se um especialista em reformas do sistema educacional americano. Começou dando aula em Boston para "adolescentes difíceis" — a escola, na prática, funcionava como a última parada antes da prisão ou do hospital psiquiátrico. De volta a Nova York, escolheu a escola mais degradada da cidade para oferecer serviços sociais 24 horas por dia, 365 dias por ano, apostando que a escola seria o centro irradiador da reconstrução do bairro. Funcionou. Com isso, Canada começou a montar, quarteirão por quarteirão, o que hoje é um dos mais ambiciosos experimentos sociais e pedagógicos dos Estados Unidos, o Harlem's Children Zone.

O projeto, conhecido pela sigla HCZ, atende 10 000 crianças, já se expandiu para 97 quadras do Harlem e tem um enfoque inédito: acompanha os alunos do jardim da infância à universidade. A proposta é reduzir a violência urbana e quebrar o ciclo de reprodução da pobreza através da educação. Para isso, o programa oferece uma enorme gama de serviços sociais, de atendimento pré-natal a atividades culturais. As aulas são dadas em "escolas-charter”. São escolas públicas com administração privada, e seus professores, em vez de funcionários públicos, são contratados como funcionários de uma empresa. Faz unia diferença brutal. Primeiro, os professores são avaliados e remunerados pela competência. Segundo. podem ser demitidos se seu desempenho for insuficiente. Na rede pública de Nova York é tão difícil demitir um professor que os mais desastrosos, enquanto corre o processo de demissão. que dura anos, são tirados da sala de aula e encaminhados para "rubber rooms", salas especiais em que eles ficam o dia inteiro lendo jornal, olhando para o teto, cochilando sobre as mesas... Mas recebem no fim do mês. Diz Canada: "Isso é menos trágico do que deixá-los nas salas de aula arruinando o futuro das crianças, tornando miserável a família delas e inabitável sua vizinhança. O mau professor, repito, é uni perigo para o aluno, para o bairro onde ele vive e, em última instância, para o país".

O HCZ de Geoffrey Canada está chamando a atenção dos Estados Unidos e do mundo. O presidente Barack Obama decidiu implantar o modelo em outras vinte cidades americanas, como forma de educar e conter o crime. O projeto de Canada é a estrela do documentário Waiting for Superman (Esperando pelo Superman), do cineasta Davis Guggenheim, o mesmo autor de Uma Verdade Inconveniente. É impossível a qualquer pai ficar indiferente ao que Esperando pelo Superman mostra. A narração gira em torno da história de cinco crianças de idades e cidades diferentes que dependem de um sorteio para entrar numa escola-charter. Sim, o futuro delas depende de que a bolinha com o seu número saia da gaiola esférica. Há sempre mais candidatos do que vagas nessas escolas, algumas verdadeiros núcleos de excelência que produzem alunos com aprovação quase garantida nas boas escolas de ensino superior dos Estados Unidos. Se não conseguir vaga em uma charter. a alternativa para o bom aluno de família pobre é a escola pública, com todos os seus vícios. As centrais sindicais dos professores públicos são, de longe, os maiores doadores de campanha para os políticos do Partido Democrata — e financiam também inúmeros republicanos. Com isso compram a proteção e os privilégios de seus filiados. Geoffrey Canada sonha em quebrar esse conluio ruinoso para o futuro das crianças pobres americanas.

As escolas-charter são um caminho. mas não oferecem soluções mágicas. Um levantamento feito pela Universidade Stanford sobre elas mostrou que em 83% das experiências as crianças aprendem o mesmo ou até menos do que em muitas escolas públicas. De estelar mesmo desponta o projeto de Geoffrey Canada no Harlem — 97 quarteirões! 10.000 crianças! Do jardim da infância à universidade!
Além de tudo, Canada dá aula de tae kwon do. Ele é faixa preta. Chega fazendo cena. Sai do vestiário com sua faixa preta e começa a se aquecer diante de todos, sem falar com ninguém. Quando bate palmas duas vezes, os alunos se perfilam. Canada está com cara de mau. Um monstro. Luta com um dos alunos mais experientes. É um show. O aluno voa. Ele voa. As crianças ficam mesmerizadas. Terminada a aula, Canada volta a ser o que é. Simpático, sorridente e solidário. Ele explica: "Essas crianças me veem como um gigante, um Superman ou Batman. Num mundo tão frio, tão duro, as crianças precisam de heróis. Heróis dão esperança e. sem esperança, essas crianças não têm futuro. Então. eu faço o papel de herói para elas, mesmo que, para isso, tenha de recorrer a truques baratos".